Estudantes desistem de morar em repúblicas da UFOP por medo de trotes violentos

Estudantes desistem de morar em repúblicas da UFOP por medo de trotes violentos

As 60 repúblicas federais da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) têm sido alvo de relatos de trotes violentos, o que tem afastado novos estudantes. Em 2020, o Ministério Público Federal (MPF) recebeu 103 denúncias de calouros por tais práticas. Desse número, 92 desistiram de morar nas casas gratuitas. Atualmente, existe uma ação do MPF para exigir que a instituição de ensino mude o sistema de gestão e de seleção dos estudantes nas moradias.

No dia 11 de fevereiro de 2020, a Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão (PRDC), órgão do MPF, recorreu a decisão do Juízo Federal de Ponte Nova, que negou uma liminar para obrigar a UFOP a adotar em todas as repúblicas o critério exclusivo de avaliação socioeconômica para preenchimento de todas as vagas ociosas e de todas as vagas se surgirem. A ação também tem a intenção de acabar com o uso de “afinidade”, em que os calouros são admitidos apenas quando suportam um período de provações físicas e psicológicas de estudantes veteranos.

Além disso, o MPF pede que a Justiça retire o poder de veto e de expulsão dos veteranos, implementando uma gestão de vagas semelhante ao que é utilizado nos apartamentos e casas que já têm suas vagas preenchidas por critério socioeconômico.

A Ação movida pelo MPF foi instaurada em dezembro de 2019, com a finalidade de acabar com o sistema de autogestão das repúblicas federais da UFOP em que os calouros, chamados de “bichos”, são escolhidos por critério dos próprios veteranos da casa.

Nessa indicação, o MPF diz que as “batalhas” das repúblicas se referem a provas físicas e psicológicas, tendo casos de perda da dignidade e direitos básicos, e, ainda assim, os calouros estão sujeitos a serem expulsos das moradias. O Ministério Público Federal considera que esse método de gestão das casas causa medo e afasta os alunos das repúblicas.

No inquérito, o MPF entrevistou 103 estudantes da UFOP que moram nas repúblicas federais. Desses, 60 afirmaram que teriam interesse em morar nas repúblicas federais se a UFOP mudasse as regras vigentes. Um questionário preenchido por esses alunos mostrou que o principal motivo de afastamento dos calouros das moradias são as “batalhas”, tendo 92 estudantes apontando esse item. Outros 64 estudantes também indicaram “ambiente inadequado ao estudo”, outros 64 pontaram a não adoção do critério socioeconômico, tendo todos presenciado práticas de homofobia, misoginia, racismo e uso de drogas.

Em seu recurso, o MPF defende que o atual sistema de gestão das repúblicas demanda uma atuação imediata para que a UFOP não continue ignorando seus deveres de instituição pública.

“A situação é grave e a omissão do Estado pode culminar com a desistência do curso pelo calouro ou com a imposição de privações de toda ordem para tais estudantes que alcançam o ingresso na Universidade Federal, mas não possuem condições de obter moradia digna com seus próprios recursos. Por outro lado, em todos os semestres sobram vagas nas repúblicas federais, mas os alunos de baixa renda não procuram ocupá-las, diante do temor das ‘batalhas’ que vitimam os recém-chegados”, diz o recurso, assinado pelo procurador regional dos Direitos do Cidadão, Helder Magno da Silva.

Em sua manifestação, a UFOP alegou que não tem condições financeiras para manter 60 casas e que a contribuição mensal das repúblicas que não consideram o critério socioeconômico é três vezes maior que a devida pelos alunos moram nas moradias pelo critério de baixa renda.

Para o MPF, a defesa da UFOP não deve ser considerada, pois se contrapõe “à garantia da dignidade da pessoa humana, ao dever de respeito e proteção, à obrigação de promover as condições que viabilizem e removam toda sorte de obstáculos que estejam a impedir as pessoas de viverem com dignidade, aos direitos à moradia adequada e ao acesso à educação. Busca-se, em verdade, coibir/impedir práticas pouco republicanas, antidemocráticas, desumanas, segregatórias, excludentes, discriminatórias e autoritárias, que devem se sobrepor, por óbvio, à limitação orçamentária”, diz o recurso.

O MPF também pede que seja providenciado um novo espaço físico fora do campus da universidade adequado para funcionamento da Ouvidoria da UFOP, tendo estrutura para receber representações e acompanhamento de denúncias. Além disso, o órgão pede que seja disponibilizado o link em sua página oficial na internet para representações sigilosas.

Duas tragédias

Na última semana, a morte do estudante de artes cênicas da UFOP, Daniel Macario de Melo Jr, completou 10 anos. O corpo do aluno foi encontrado no dia 27 de outubro de 2012, dia seguinte a uma comemoração na república que morava em Ouro Preto. Segundo testemunhas, Daniel havia bebido bastante e a família acredita que ele tenha sido vítima dos trotes violentos impostos aos calouros da universidade.

Natural de Guaranésia, a 458 km de Belo Horizonte, Daniel foi para Ouro Preto realizar o sonho de cursar artes cênicas, mas foi interrompido por uma tragédia que levou ao seu óbito aos 27 anos.

Segundo o boletim de ocorrência registrado pela Polícia Militar na época, o corpo de Daniel foi encontrado já sem vida no dia 27 de outubro de 2012. Segundo testemunhas, na noite anterior, o estudante tinha consumido bebida alcoólica em uma comemoração na república onde morava. Ao acordarem, os colegas de casas encontraram o universitário morto, sem sinais de violência.

Em fevereiro de 2013, a Polícia Civil concluiu o inquérito de investigação do caso, sem o indiciamento de ninguém durante a apuração, por não ter tido indícios de participação de terceiros na morte. De acordo com a apuração policial, “foi verificado alto teor alcoólico no sangue, o que provavelmente provocou mal súbito após uso exagerado de bebidas alcoólicas”.

Cerca de um mês depois da morte de Daniel, outro universitário morreu em Ouro Preto. No dia 30 de novembro de 2012, Pedro Silva Vieira foi encontrado inconsciente em uma república. Ele chegou a ser levado para a Unidade de Pronto Atendimento (UPA), mas não resistiu e morreu na unidade. No registro da Polícia Militar consta que o estudante havia ingerido bebida alcoólica e vomitado durante a noite.

Nesse caso, a Polícia Civil concluiu o inquérito cinco anos depois do fato, em setembro de 2017, também sem indiciamento. De acordo com a investigação, houve uso exagerado de álcool e de maconha. A causa da morte, de acordo com o órgão, foi “depressão respiratória do sistema nervoso central com vômito e arritmia cardíaca” por causa da intoxicação pelas drogas.

O que diz a UFOP

Em contato com o Jornal Galilé, a UFOP disse que que as repúblicas federais de Ouro Preto são um modelo único de moradia universitária no Brasil, se tratando de imóveis que pertencem a universidade funcionam como repúblicas universitárias, como parte da política de permanência dos discentes da instituição de ensino superior, para moradia estudantil na cidade.

De acordo com a Resolução CUNI 1540 (Conselho Universitário), em seu artigo 1º: “Art. 1º As residências estudantis de Ouro Preto integram a política de incentivo à permanência dos discentes na UFOP, e, como tal, destinam-se a assegurar moradia aos estudantes regularmente matriculados nos cursos de graduação e pós-graduação”.

O Art. 5º, da mesma norma, traz as “regras” nas quais as repúblicas se baseiam para o ingresso dos moradores: “Art. 5º O ingresso de moradores nas residências estudantis será realizado diretamente por meio de cada residência, devendo-se priorizar os estudantes de graduação em vulnerabilidade socioeconômica provenientes de municípios distintos de Ouro Preto e Mariana”.

“Cabe-nos asseverar, também, que nesse tipo de moradia todos os gastos com manutenção, benfeitorias, pagamentos de impostos e taxas ficam por conta dos moradores. Com base nesses critérios, o discente vulnerável socioeconomicamente, como já vem ocorrendo, vem ocupando paulatinamente esses espaços. Faz-se necessário destacar que, caso ele não queira se enquadrar no processo de autogestão regulamentado para as repúblicas, de acordo com a Resolução Cuni 1540, a UFOP possui moradias de critério socioeconômicos, regidas por edital com entrada mensal e com a gestão do patrimônio sendo realizada pela universidade. As moradias socioeconômicas são próximas ao campus e tem vagas disponíveis aos bolsistas permanência”, disse a UFOP.

Mais uma denúncia

Em outubro deste ano, um estudante de Engenharia Metalúrgica fez uma denúncia contra a República Sinagoga. Ele relatou que os moradores da casa teriam colocado Rivotril na bebida do jovem e o obrigado a tomar cachaça misturada com óleo, molho de pimenta e molho shoyu. Além disso, eles teriam jogado um balde de água misturado com pó de café no rosto do estudante, o que teria asfixiado o rapaz e causado pneumonia. Posteriormente, o universitário teria entrado em coma alcoólico. A moradia negou que o caso tenha acontecido como o jovem relatou.

Posteriormente, no dia 27 de outubro, o mesmo estudante foi ouvido pela Comissão de Direitos Humanos da Câmara Municipal na tarde de quinta-feira (27). Na ocasião, ele relatou toda a sua trajetória envolvendo a moradia citada. No relato, apareceram outros casos de supostos crimes que os moradores da casa teriam cometido contra o rapaz, dentre eles, xenofobia. Natural de Maranhão, o jovem relatou ter sofrido humilhação por conta de seu estado de origem, sendo chamado de “maranhense safado”.

A UFOP disse que ofereceu aos estudante, desde o recebimento da denúncia, o acompanhamento de orientação estudantil, psicológico e pedagógico. Além disso, a universidade abriu um processo administrativo disciplinar discente para apuração dos descumprimentos das normativas institucionais e aplicação de penalidade.

O Jornal Galilé entrou em contato com a Associação das Repúblicas Federais de Ouro Preto (REFOP), mas não houve resposta até o momento desta publicação.

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