Por: Moacir de Castro Maia
Historiador e autor do livro “De Reino Traficante a Povo Traficado” (Arquivo Nacional) e co-autor de “Sacerdotisas voduns e rainhas do Rosário: mulheres e Inquisição em Minas Gerais (Chão Editora)
Em noites de lua cheia, a africana Ângela Maria Gomes incorporava o vodum (nome como se nomeia as divindades e também a religião) e dançava com outras mulheres em volta de uma gameleira em um povoado pertencente a Ouro Preto, por volta de 1759.
Enquanto buscava praticar os ritos religiosos de sua terra natal, ela era vigiada e perseguida por homens brancos, que escreveram várias cartas à Inquisição para denunciar a sacerdotisa vodum como a grande “mestra das feiticeiras” daquele arraial minerador.
Já fazia algumas décadas que Ângela havia sido capturada na região dos reinos de Uidá e Grande Popo (atual República do Benim), na África Ocidental, e vendida como escrava para a nova capitania de Minas Gerais. Em Minas, ela passou da escravidão para a liberdade.
Além de conquistar a alforria, tornou-se senhora de sua casa, adquiriu trabalhadores escravos e vivia da produção de pães e quitandas, sendo reconhecida como uma mulher liberta. A presença destacada e o relativo êxito econômico dessa mulher africana começaram a incomodar uma parcela de homens livres daquela sociedade escravista.
Era um momento de insatisfação de parte da classe senhorial de Itabira do Campo (atual Itabirito – MG), que vivia um período de declínio da exploração do ouro naquele arraial. Além disso, ser senhora de sua casa possibilitava maior liberdade para Ângela praticar seus cultos particulares, celebrar as divindades voduns e estreitar laços com pessoas de sua confiança.
Nessas cerimônias secretas, ela se religava à família deixada na África, às histórias de seus ancestrais, às crenças religiosas de sua terra natal, o que contribuía para enfrentar as perdas, os infortúnios e os dilemas vivenciados do lado de cá do Atlântico.
A perseguição masculina contra Ângela e outras mulheres negras do povoado revela o quanto as práticas mágicas, o papel econômico independente e a liderança religiosa dessas mulheres libertas desagradavam parcela da elite do arraial.
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As denúncias recebidas pelos agentes da Inquisição em Minas chegaram até o Tribunal do Santo Ofício, em Lisboa, com a acusação de que ela causava malefícios à população local. Contudo, outras fontes demonstram que algo havia sido omitido pelos denunciadores.
A africana não era apenas uma destacada praticante do culto vodum. Ângela também era uma das mais proeminentes participantes de irmandade católica na localidade, a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos.
Essa era uma das únicas formas de organização coletiva de pessoas negras aceitas e permitidas pelo poder colonial, que buscava o controle social da população escrava e liberta e a assimilação delas ao catolicismo – a religião oficial do Império português.
Na Irmandade do Rosário dos Pretos de Itabira do Campo, Ângela foi coroada rainha do Rosário mais de uma vez. Sua influência e sua autoridade transparecem em diversas decisões, como a posse da sua escrava Ana como juíza da irmandade e a doação de uma vara de prata (signo de autoridade do cargo) para que ela pudesse sair em cortejo festivo e cumprir suas funções na mesa de direção com dignidade e certa opulência.
Para esta africana e outros conterrâneos não era contraditório ser uma sacerdotisa do culto vodum, abraçar o catolicismo ou dançar para o vodum Loko (de origem no orixá Iroko dos iorubás), pois a religião vodum era dinâmica, aberta e incluía novos elementos, mesmo se de outros territórios e religiões.
A crença era que quanto mais protetores a pessoa tivesse, mais protegida espiritualmente ela estaria, o que buscava equilibrar a relação entre o mundo visível e o mundo invisível do universo vodum, além de demonstrar temor e respeito por práticas de outros indivíduos e religiões.
É uma lição de tolerância religiosa vinda dessa cultura africana, que contribuiu na formação de vários ritos afro-americanos, incluindo o candomblé no Brasil.
As denúncias contra Ângela foram arquivadas em Lisboa, enquanto continuava a sofrer a perseguição local, inclusive de membros da sua confraria. Contudo, superou as adversidades, manteve-se senhora de sua casa e voltou a ser coroada rainha do Rosário no final de sua vida. Sendo também católica, deixou sua residência como patrimônio para a sua irmandade.
Fonte: artigo publicado originalmente na Folha de São Paulo. ( Acesse aqui )
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